segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Mulheres que se vestem de Sangue

E assim, como quem desperta de um profundo sono, ou como quem cai em no mais belo cenário de sonho, lá estava eu, sob um sol matinal brilhante, em uma ilha, farta em cores, flores e brilhos. O céu límpido me lembrava a primavera, as cores vívidas e os aromas das flores reforçavam a idéia. À minha volta, algumas montanhas de presença forte, verdes e senscientes de tudo o que ali, naquela planície ocorria.


E eu lá, por pouco mais de um instante, olhava absorta, esta paisagem belíssima. Sentia-me sozinha e diminuta, diante da beleza de todos os Deuses  que regiam aquele lugar.
Achava-me apenas sozinha. Ao meu lado um homem de sorriso largo, torso bronzeado, olhos calorosos e claros. Seu cabelo era de um bronze que até hoje nunca conheci. E ele ali, falava comigo... como se fora meu guia, neste local paradisíaco. Não me recordo de nossos diálogos, mas sinto ainda agora, forte no peito o que me disse...


Descemos um pouco e avistamos uma espécie de vila, ou talvez uma tribo. A mim, parecia um balneário cheio de turistas de todas as nacionalidades, mas não de todos os gêneros. Pois apenas um homem havia ali, aquele me acompanhava. Meu guia.


Ele me conta que esta tribo, (era de fato uma tribo), há séculos ali existia. De fato era realmente composta de mulheres. Mulheres que traziam sua linhagem para este local, ano após ano. Após a menarca, em algum momento da vida, uma ou mais mulheres da mesma geração, iriam visitar esta ilha, especificamente neste período, neste festival.


Este encontro era anual.


E ele me apresenta uma matriarca, negra, linda. E ela me diz que sua familia "está" ali já há mais de 300 gerações. Apesar de eu não compreender o conceito de estar que a matriarca utilizara, muito menos o que ela dizia, meu guia tentava ajudar-se com a tradução e com as explicações.


Ela então nos leva a uma parte mais afastada da tribo, onde uma grande cabana de madeira foi construida. Pede que o guia aguarde lá fora, e me mostra o interior.
A principio, me parece estranho, pois a cabana apesar de grande por fora, por dentro era imensa. Suas paredes não eram mais de madeira, pareciam ser, em algumas partes, feitas de barro, em outras, de rocha.
Uma série de inscrições rupestres (por falta de definição melhor), marcavam estas paredes, com histórias de mulheres, com histórias de famílias, e algumas poucas, pareciam descrever uma civilização inteira... pelo menos, era o que eu entendia. Melhor dizendo, era o que eu sentia. Alias, naquele local, o entendimento não representava muita coisa. Os sentidos pareciam ser mais importantes. As emoções pareciam ser a energia motriz da comunicação não-verbal. Alias, percebi que naquele local, TODA comunicação era não verbal.


Andamos muito, eu e Negra matriarca, até algum lugar que seria o fundo da cabana, que agora mais lembrava uma caverna. Lá tinham centenas e centenas de jarros de cerâmica, mais altos que eu, com tampa. Eles pareciam ricamente adornados, por finíssimas linhas de tinta, desde sua base. Alguns tinham estas linhas até o topo, outros, muitos outros, pouco mais que até a metade e, apenas alguns, tinham essas linhas abaixo da metade. Estas linhas lembravam as mais delicadas rendas tecidas no nordeste, mas eram diferentes, diferentes das rendas e, diferentes entre si. As cores pareciam jamais se repetir.  Os desenhos também.


De repente eu sinto, eu compreendo. Cada jarro pertencia à uma das integrantes das famílias deste imenso clã. Este jarro era o depositário secular do sangue vertido por cada uma das mulheres que integravam esta tribo. Eram jarros menstruais... Ela me mostra aquele que seria o meu jarro, ou o jarro de minha família (ainda estou perdida no conceito), e ele era um dos muitos que estavam marcados pouco acima da metade. Entendo  agora que os desenhos são feitos pela umidade do sangue,  que demarca o vaso, como a terra vai se demarcando durante as eras.


Sentamos ali, em silêncio. Na mais profunda tranquilidade e cumplicidade. Eu entendera. Era apenas isso que ela queria. Que eu entendesse... o silencio durou por minutos ou horas, não sei dizer... mas foi por um tempo confortável e caloroso. Deixamos a cabana-caverna. Meu guia lá fora me esperava. Tinha muito mais a me mostrar.


Seguimos então, pra outra área da aldeia. Milhões de perguntas saltitavam em minha cabeça, mas eu não me atrevia a perguntar... Nem mesmo a mais simples curiosidade de saber por que meu guia era o único homem ali presente, eu tinha coragem de esclarecer, pois qualquer palavra que eu emitisse, parecia agredir o equilíbrio ali instalado.


Chegamos. Nesta àrea, uma menina, entre seus 13 e 15 anos me recepciona. Novamente meu guia se afasta. Ela era belíssima, seus cabelos castanhos ondulados. Sua pele bronzeada, seus olhos verdes. Sua boca parecia uma fruta madura, doce e úmida. Que boca! Ela me leva à uma área, onde outras mulheres, das mais diversas etnias, misturam ervas, no chão, em uma espécie de tanque / canal. É uma mistura gelatinosa, vermelho vivo. A garota me diz que parte desta mistura vem do sangue dos jarros, do sangue de todas as mulheres do mundo, a outra parte é retirada de ervas, que ajudarão na consistência necessária, para que, após a secagem, esta mistura vire um tecido. Deste tecido serão feitas as túnicas das mulheres que se vestirão de sangue esta noite.


Pergunto sobre as mulheres que se vestirão de sangue, por que da ritualística, de onde elas vêm, sua idade e o significado desta vestimenta.
Parte de minhas perguntas são ignoradas. Mas consigo saber que é uma grande honra, pois poucas são escolhidas para se vestir de sangue. A mulher se veste de sangue apenas uma vez na vida. Há apenas um festival por ano, e por ano, apenas 13 ou 19 mulheres são escolhidas. Ser escolhida é a maior benção que uma mulher desta tribo pode ter. Ela, a garota, ainda não tinha sido escolhida, mas se diz muito feliz por saber que, em minha primeira visita à tribo, tive esta honra.


!!!!


Sem palavras. Eu havia sido escolhida para algo que não sabia o que era, não fazia questão, e não saberia honrar com a pompa correta, enquanto aquela garota achava esta escolha a décima maravilha do mundo. Não, isto estava errado.


Ela me devolve ao meu guia.


Ele então me mostra a tribo inteira e agora, o pôr do sol se aproxima. Ele me diz que preciso me preparar. Pois a noite seria para mim deveras importante.
Eu pergunto então, o que ocorre neste ritual, com estas mulheres. Ele me diz que elas serão mortas, (parece não se importar em me dizer que EU SEREI MORTA!), em honra à todas as divindades que sangram. Que elas recebem o título de matriarcas e as honras de deusas, na terra, encarnadas. Segundo meu guia. Estas mulheres escolhidas, serão honradas como deidades até o final da existência humana. Serão tratadas como irmãs pelas outras deusas, até o final de todos os tempos.


E eu ali, aparvalhada, amedrontada, maravilhada e estarrecida.


Ele me diz que as integrantes do clã já são Escolhidas. Já são especiais, já que não pertencem de fato à uma unica família, à uma unica linhagem, à uma unica etnia. Mas pertencem à um único clã. à um único sangue.


Então uma bela mulher me chama. É hora dos preparativos. Banhos de ervas, chás, perfumes e adereços precisam ser trabalhados.


Uma última pergunta em minha mente: "Como então, elas sabem que devem vir para cá uma vez por ano, se não se conhecem? Como elas sabem que fazem parte do clã? Como elas sabem que foram escolhidas?"


E meu guia responde: "Simples, a este lugar só se chega de uma forma: Elas sonham!"


E então eu acordei....


3c
Março/2004

2 comentários:

  1. Como assim voce acorda antes do sacrificio? Pode voltar a sonhar e continuar o relato!
    Belissima viagem!

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  2. Ufa... ainda bem que não me viu tendo a honra kkkkkk
    mas parabéns! Aguardo as cenas dos próximos capítulos!

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